Eduardo Kobra é um artista urbado nascido no Jardim Martinica, bairro humilde da zona sul da cidade de São Paulo, e com sua arte retrata pessoas e histórias com grande realismo e cores, o que o tornou conhecido no Brasil e no mundo.
As telas dele podem ser murais, muros, prédios e o que mais estiver em branco, que se tornaram pontos turísticos nas maiores cidades do mundo. Em entrevista exclusiva ao iG Turismo, o pintor e ativista da paz, como se denomina, fala sobre suas inspirações, os preconceitos sofridos pela arte de rua e o que ainda planeja fazer e deixar para o futuro.
Um dos pontos que mais chamam a atenção em sua arte é o hiper-realismo, em que retrata grandes nomes em diversos segmentos, como é o caso de Oscar Niemeyer, Anne Frank entre muitos outros. Independente de onde serão feitos os murais, a decisão de quem será a personalidade retratada é escolhida pelo próprio artista, que se baseia em seus princípios de que a arte está, e sempre esteve, conectada com a liberdade de poder ser quem é e de se expressar, expondo aquilo que acredita dentro das possibilidades.
“Uma das minhas propostas de trabalho é a valorização de personalidades que eu pessoalmente acredito que, de alguma forma, fizeram trabalhos importantes para a sociedade, para a comunidade, ou foram exemplos em questões de lutas, na proteção de causas das quais eu estou intimamente ligado. Então, dentro disso que eu estou falando, hoje as decisões são muito importantes para mim, estão conectadas àquilo que eu penso sobre a arte. E poder expor quem eu sou por meio dos meus murais”, conta o artista.
Início e propósitos
Ainda na adolescência, Eduardo Kobra já mostrava os primeiros sinais artísticos, fazendo artes nas ruas e na escola, chegando até mesmo a receber advertências por crime ambiental. Hoje o artista é conhecido dentro e fora do Brasil por trabalhos que visam conscientizar para questões importantes, como liberdade, combate à violência e ao próprio meio ambiente.
Kobra conta que para ele tudo sempre foi por intuição e percepção, sendo um artista autodidata ou, como o próprio diz, com uma formação natural e espontânea das ruas. “Lá tudo é um processo e eu acho que não temos como fugir disso, e é muito difícil você cobrar algo de alguém que não tem conhecimento”, diz sobre seu início que já foi considerado "vandalismo".
“Quanto ao conhecimento, eu ainda estou nesse processo, de forma muito consistente, ao longo de muitos anos percebendo essa necessidade de evolução, que não é só pessoal, não só na minha obra, é com a minha família e com as pessoas que estão próximas”, declara o artista. “E isso se dá também no campo artístico, no sentido de perceber que é importante a valorização do patrimônio histórico, e as questões que eu acabo abrangendo em meu trabalho. Isso tem muito a ver com o que eu vivi, vi, passei, acredito, contesto, o que me incomoda e o que quero mudar”.
Com isso, o trabalho de Kobra hoje está diretamente voltado para causas que considera importante, como o combate à violência, ao racismo e pela união dos povos, como uma coexistência.
“Muitos fatores que eu realmente acredito que, por meio da arte, é possível começar uma mudança. A arte tem me mudado e eu tenho certeza que pode mudar as pessoas ao redor do mundo também”, comenta.
A arte pode mudar vidas
O primeiro trabalho fora do Brasil foi feito em Lyon, na França, local que Kobra considera excepcional. O artista diz que a possibilidade de sair do Brasil, até aquele momento, era algo inimaginável, especialmente para a França, que é considerado um dos berços da arte mural.
“Existem algumas equipes lá, super históricas e tradicionais, pintando há muitas décadas muralismos do tipo Trompe-l'oeil na lateral de prédios, um deles chamado Cité Création , que são fantásticos”, conta. “Então eu tive a possibilidade de conhecê-los também, o que foi espetacular naquela ocasião. Estive com eles, no estúdio deles, pude aprender muito, vendo os murais que eu já acompanhava por livros”.
Kobra diz ter sido muito bem acolhido em Lyon, onde teve uma experiência que considera única, podendo realizar um mural sobre os imigrantes, ajudando a valorizar as pessoas que vivem por lá.
“É um bairro que estava sofrendo uma repressão muito grande, uma especulação imobiliária, e queriam tirá-los dali, de toda aquela região. E, por meio da arte, veio a possibilidade do bairro ser transformado, e com isso eles não serem retirados de suas casas. Esse foi um projeto que surtiu muito efeito, não foi só meu trabalho, outros artistas vieram e também pintaram com o mesmo propósito”, lembra.
Entre questões de dificuldades e favoráveis, o pintor conta que que os convites, assim como o de Lyon, surgem devido aos seus trabalhos realizados no Brasil que, ao serem vistos, despertam interesse internacional.
O desaparecimento de grandes obras
Com obras espalhadas por vários países, algumas ganharam grande repercussão e importância, como uma obra que retratava a famosa fotografia “O Beijo”, em um edifício na cidade de Nova York, que veio a se tornar um dos 10 mais fotografados de toda a cidade norte-americana. O enorme sucesso, porém, foi o que resultou no desaparecimento da mesma.
Kobra conta que o mural fazia parte de seu projeto chamado “Muro das Memórias”, do qual começou em São Paulo e foi levado para várias partes do mundo. “A parte inferior do mural mostrava a Times Square em 1945 e, na parte superior, estava a cena do beijo, que aconteceu naquele local, no mesmo momento. É uma imagem muito significativa, simbolizando o final da Segunda Guerra Mundial”, explica.
Eduardo conta que, logo que o painel foi entregue, houve um pedido para que o prédio fosse tombado – caso ocorresse, nada mais poderia ser feito no lugar -, então o proprietário decidiu remover completamente a arte, deixando tudo cinza.
Sobre a remoção de obras de artes, como esta e muitas outras, Kobra afirma achar uma decisão controversa e sem sentido.
“Imagina se tivéssemos removido tantas obras de arte que a gente vê hoje nos museus, nas galerias, simplesmente substituir por outra ou apagá-las, murais importantes. Eu não estou falando do meu trabalho em específico, mas de tantas obras fantásticas que temos ao redor do mundo. Então hoje eu não sou a favor da remoção de murais não, e sim da preservação, da conservação, porque eu fico muito feliz quando vejo um mural do Diego Rivera, do (David Alfaro) Siqueiros, do Cândido Portinari ou ‘n’ outros artistas espalhados pelo mundo”.
Os direitos de imagem
Para utilizar imagens na internet precisamos ficar atentos à questões como direitos de imagem e reprodução (sejam de fotógrafos específicos ou bancos de imagem), ao retratar imagens realistas de grandes nomes, como é o trabalho de Kobra, a questão não é tão diferente, apesar de ter as suas peculiaridades.
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“O meu trabalho hoje está muito dentro dos meus propósitos, dos meus princípios, dos caminhos que eu trilhei no início da minha trajetória, sim eu me inspirei em alguns outros artistas quando eu estava em um processo de desenvolvimento”, diz o artista, que já segue por uma linha bem diferente.
“Hoje eu costumo, vamos dizer, ‘pintar com o meu próprio pincel’, seguindo o meu caminho. Retratar personalidades (que foram importantes para a nossa história) é apenas uma parte do meu trabalho. Como é o caso do Ayrton Senna, por exemplo, eu fiz uma pesquisa histórica, em jornais, revistas, visitando museus, eu vi muitas peças do Ayrton, mas tudo com o consentimento da família Senna”, conta.
Kobra diz buscar uma conexão para ter mais liberdade no desenvolvimento de suas obras, e aprender mais com as pessoas que realmente conhecem e estão envolvidas (com as personalidades). “Então eu busco sempre esse processo no desenvolvimento das minhas obras. Lembrando sempre que em tudo o que eu faço existe uma realidade e uma releitura. Há uma criação também, eu acabo trazendo muitos elementos para essas figuras e para essas imagens”, continua.
“Quando se trata de imagem, porque tem vários projetos diferentes que eu realizo, mas sempre com esse contexto de trazer isso para as ruas e, na grande maioria das vezes, isso é feito sem patrocínio, ou seja, sem fins comerciais, são artes que têm o propósito de trazer essa questão democrática para as ruas e valorizar essas pessoas que foram tão importantes para a história”, exemplifica.
O hiper-realismo em grandes proporções
Outro fator que se destaca no trabalho de Kobra, além do grande realismo ao retratar imagens, é o tamanho de alguns de seus murais, que chegam a dezenas e até centenas de metros.
O pintor diz que isso não foi algo pelo qual buscou, tendo surgido de forma espontânea durante os trabalhos convencionais. “Surgiu porque eu sempre me interessei por essa questão de luz e sombra, anatomia, perspectiva. Não foi algo que eu achei que pudesse dar certo ou vi alguém fazer, eu simplesmente fiz porque achava bonito. Era algo que mexia comigo, por ser um grande desafio, e mexe até hoje, a pintura é infinita e sempre tem algo novo a se conhecer e evoluir”, afirma.
Ser o responsável por alguns dos maiores murais do mundo, segundo o artista, não era uma meta, apenas aconteceu de forma natural, pintando em ruas cada vez maiores e em lugares mais inusitados, com maior dificuldade.
“Isso foi crescendo ao longo dos anos e hoje eu estou nesse processo de desenvolvimento, desses trabalhos com os murais. Cheguei a fazer mural de 6 mil m², também cheguei a pintar murais com 100 metros de altura, e eu trabalho com uma técnica simples, como desenhávamos na escola, no primário, de quadricular. Então assim, os desenhos são feitos primeiro em menor escala, algumas vezes são feitos em tela e outras vezes, quando eu gosto do resultado, acabo passando para os muros”, explica. “Geralmente, para cada desenho que é feito no muro, há uma tela que é a original onde eu fiz todos os testes de cor e essa tela acaba sendo exposta em alguma galeria ou museu. Mas também chego a fazer 10, 20, 30 desenhos diferentes para chegar ao resultado. Sou bastante crítico aquilo que eu faço”.
O preconceito com a arte de rua
Com artes reconhecidas e valorizadas ao redor do mundo, a arte de rua ainda sofre com diversos preconceitos. Para Kobra, o Brasil está na vanguarda do movimento de arte de rua, ou muralismo, e acredita que estamos todos aprendendo com isso.
“Acho que se transformou em um dos movimentos mais icônicos e mais importantes da história da arte, eu já colocaria como um dos grandes movimentos de arte, principalmente desse século”, salienta o artista. “E aí, nós temos com a persistência, perseverança, consistência e qualidade artística, pictórica, as mensagens... Nós chegamos em um momento em que o muro que dividia as grandes galerias e os museus das ruas já não existem mais. Ele caiu há muito tempo! E agora ficou difícil sustentar o preconceito, dizendo que a qualidade do trabalho é inferior porque o artista não cursou universidade X ou Y. Eu acho que a rua se equiparou à arte que é feita em qualquer outro lugar”, afirmou o artista que, ressalta, é autodidata.
Para Kobra a arte é algo que vem de dentro de cada um, das emoções, dos sentimentos e do coração. “[A arte] vem daquilo que você é, do que acredita, dos seus princípios, dos seus valores. Então isso faz com que a arte possa surgir dos lugares mais simples, e eu vejo isso todos os dias aqui no Brasil”, afirma.
Contudo, o artista afirma que ainda presencia certos preconceitos, dos quais acredita que, como o nome já diz, vêm da falta de conhecimento e de discernimento. “É claro que existe aqui no Brasil, em certas situações. Ainda existe uma elite conservadora, com interesses pessoais, que exclui, ou tenta fechar os olhos para a realidade do que acontece nas ruas”, afirma. Porém, não é apenas no Brasil que a arte sofre com preconceito, “no exterior nós temos ainda lugares muito tradicionais, inclusive lugares que são berços do muralismo, que ainda têm preconceito em relação à arte mural. Acho que é como se tivessem esquecido da história e agora estão retomando de novo a memória”.
Os planos para o futuro e a volta pós pandemia
Eduardo Kobra conta que tem muitos trabalhos em processo, com convites em andamento pelo exterior. “Graças a Deus, pouco antes da pandemia, tinha cerca de 40 convites. Agora eu estou trabalhando com um mural de 3 mil metros em San Marino, e alguns outros na França, na Itália, nos Emirados Árabes, na China, vários murais nos Estados Unidos, em vários estados diferentes”, conta.
Já no Brasil, Kobra também está levando adiante seus trabalhos mais recentes, “estou concluindo uma série de projetos, muitos estão sendo retomados agora, alguns se perderam durante esse processo difícil que passamos. Mas eu sigo entusiasmado, sigo feliz, sigo criando, pensando, empolgado. Sigo forte mentalmente, para conseguir enfrentar todos esses desafios, para dar o meu melhor sempre”.
Os planos para o futuro
Para um artista que já retratou tantas personalidades importantes e conhecidas, já realizou e continua realizando trabalhos gigantescos – literalmente -, ainda há muito a ser feito. Kobra tem mais de oito tipos de projetos distintos.
“Memória, história, proteção dos animais, do meio ambiente, dos povos indígenas, projetos em 3D, pintura morfológica. Tenho uma série de projetos e assim eu vou aprendendo, eu não sei o que vai acontecer, as coisas simplesmente vão acontecendo naturalmente de acordo com o que eu for aprendendo”, conta.
Para Kobra, boas histórias merecem ser contadas e pessoas merecem ser retratadas, sejam elas conhecidas publicamente ou não.
“As histórias vão sendo apresentadas, podem ser conhecidas, mas podem ser de um anônimo também. Eu faço de pessoas que nunca ninguém ouviu falar, mas que têm uma história fantástica, que me toca e eu acabo pintando isso. Então eu acho que o que eu quero fazer daqui pra frente é o que eu já estou fazendo agora. É o meu legado, acho que é o meu instituto. Acho que por meio de lá eu vou poder seguir com a minha voz aí transformando gerações, no sentido de colocar em prática as mensagens que eu venho e colocando nas minhas obras”, conclui.