Abandonar as rotinas estressantes do trabalho e da casa pode ser um sonho distante para a maioria da população, no entanto, tem-se observado um número crescente de pessoas que decidiram deixar de residir em moradias consideradas tradicionais para viver em motorhomes, chamados de “nômades modernos”. Este é o caso da empresária Cíntia Fracalanza, 49, que em 2017 decidiu que iria passar a morar sobre rodas.
Ela conta que a morte do pai e um assalto que ocorreu na casa dela foram os motivos iniciais que a levaram a tomar a decisão. “Eu perdi meu pai em 2016, mesmo ano em que minha mãe foi morar com minha irmã na Inglaterra. A partir daí, tive uma série de novas atribuições, como desocupar a casa onde morávamos e reformá-la para venda ou locação. Era uma casa enorme, com oito banheiros. Durante a virada de 2016 para 2017, a edícula ainda estava repleta de pertences da família quando a casa foi invadida”, conta.
O assalto ocorreu nas férias de Cíntia, que se surpreendeu ao retornar e se deparar com os cômodos revirados. Segundo ela, as janelas e portas foram danificadas e vários objetos pessoais estavam quebrados, o que a deixou completamente apavorada. A partir daí, ela começou a reparar os estragos, se mudou para o interior de São Paulo e começou a repensar em uma vida mais minimalista.
“Eu estava exausta de cuidar de coisas, não queria mais ter coisas. Me desfazer de pertences familiares ou cuidar dos que deveriam permanecer estava me custando tempo, dinheiro e um gigantesco estresse emocional. Eu só sabia que eu queria não ter”, explica.
Novas ideias na cabeça
Após assistir uma série na Netflix sobre as “tiny houses”, ou minicasas sobre rodas, a empresária passou a consumir qualquer conteúdo que encontrasse acerca do assunto em canais do Youtube, além de pesquisas no Google, Facebook, Instagram e Pinterest.
“O foco do seriado eram as soluções alternativas de moradia. Seja sobre chassis de caminhões, containers ou até barcos, a fim de que as pessoas pudessem se livrar de prestações de propriedades hipotecadas. Vivendo, portanto, de forma minimalista, com menos, mas com maior qualidade de vida. Com menos pertences para cuidar, o ganho dessa nova experiência seria menos vazão de dinheiro e mais tempo livre para uma vida mais leve”, detalha.
Mas foi apenas após uma conversa com a vizinha que Cíntia se decidiu definitivamente a mudar de vida. Ela se lembrou dos sonhos que o pai tinha, postergou e morreu antes de realizá-los. Por este motivo, deu o primeiro passo para morar em um motorhome.
"Eu não tinha condições de construir minha 'tiny house', mas, sim, eu podia comprar uma Kombi. Nesse ínterim, eu assisti diversos canais sobre Kombihomes e diversos nômades viajantes e tudo que eu queria era me tornar um deles. Fui então até uma oficina mecânica de confiança e conversei com os mecânicos para que eles me ajudassem a comprar uma Kombi”, conta ela que, posteriormente, optou por comprar um furgão que teria mais espaço e segurança.
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Em setembro de 2018, Cíntia encontrou um furgão, aparentemente em bom estado, na capital paulista e pagou R$ 12 mil. O carro era de 1995, isento de IPVA e movido a diesel, fazendo a empresária acreditar que estava economizando. Ela diz que não pensou duas vezes e compro o veículo modelo MB180D.
"Cheguei na oficina de guincho. Ele andou aproximadamente 40 km na estrada, mas não conseguimos mais passar as marchas. Quando chegamos na oficina, o mecânico me informou que não era uma MB, e sim uma MBomba. Descobri da pior forma que iria gastar mais do que imaginava. E então o furgão foi pra outra oficina, pois eles não mexiam com veículos a diesel. Foi um mês de trabalho, eu fui diversas vezes para São Paulo em busca de peças diversas. Eu sabia que precisava cuidar disso, pois era a minha segurança que estava em jogo. Foram em torno de R$ 10 mil entre peças, mão de obra e pneus novos. Nesse período eu estava com uma boa renda mensal, foi feita a funilaria interna e externa e a lataria ficou impecável”, diz.
Em novembro, Cíntia foi a um encontro de Kombihomes e Motorhomes em Itu, no interior paulista, realizado pelo Kombi Clube Indaiatuba. Foi o primeiro contato com outras pessoas que haviam adotado o estilo de vida nômade e voltou para casa ainda mais animada e empenhada em seguir com o projeto.
“Era minha oportunidade de ver de perto esse novo mundo em que eu estava me metendo. Não tive dúvida, campista desde os 17 anos, peguei minha barraca, meus pertences e fui de carro mesmo. Amor à primeira vista. Me senti no meio de uma irmandade em que pessoas de todos os tipos confraternizam, se ajudam, se misturam livres de preconceitos sociais. Todos unidos por características comuns como amor à natureza, busca de liberdade, de vida simples, de mais experiências, de mais amigos, ainda que passageiros de um único encontro”, revela.
Quando o furgão saiu da funilaria, ela começou a montagem do motorhome, que foi feita por ela e alguns amigos. A construção do veículo foi feita de forma caseira, com móveis e instalações adquiridos separadamente. A empresária reformou o veículo por completo na parte interior, inclusive instalando isolamento térmico para suportar as noites mais frias pela estrada.
"O teto do furgão era baixo, então eu precisava de uma solução para tomar banho dentro do furgão sem molhar tudo em volta. Comprei uma banheira e acho que fui a primeira pessoa no Brasil a colocar o item dentro de um furgão. Eu já tinha visto isso em vídeos estrangeiros. Fiz uma montagem bem rústica, porém muito criativa. Tive ajuda dos meus antigos funcionários e de mais uns amigos nessa empreitada, especialmente nas coisas mais pesadas e hidráulicas. A elétrica eu paguei para ser realizada”, conta.
Em 2019, mesmo antes da fabricação do motorhome estar concluída, Cíntia começou a viajar uma vez por mês em cidades do interior de São Paulo. Ela lembra que dormia em um colchonete, usava o frigobar do escritório durante as viagens e esticava uma extensão elétrica nos encontros de motorhomes.
"Durante esse ano fui para Brotas, Socorro, Jaguariúna , Maresias, Santos, Apiaí, Petar, Itu, Joanópolis, Bertioga, Aparecida, Cesário Lange e Águas da Prata. Em 2020, por conta da pandemia, o furgão ficou parado na garagem. Em setembro, tentei passar um final de semana num camping em Jaguariúna, mas fiquei com muito medo de me aproximar de pessoas que voltei no dia seguinte”, narra.
Cíntia viaja sozinha e diz que não se sente insegura ao sair nas estradas. “Moro sozinha desde os 21 anos, fiquei apenas dois anos casada, mas não me sinto solitária, sempre tive muita companhia. Eu amo meu espaço, minha privacidade, meu silêncio, minha organização, o poder fazer (ou não fazer) o que eu quero, quando quero e se quero. O medo é importante para que a gente não se coloque em situações de risco desnecessário, mas não pode nos paralisar. O universo cuida para que eu receba quando eu precisar. Não é magia, é física”, explica.
Além disso, Cíntia não pensa em retornar ao modelo de vida antigo. A empresária afirma que "pensar nisso a deixa arrepiada" porque na adolescência abominava os “homens de terno” e, hoje em dia, se junto a eles porque é, advogada.
"Eu realmente não estava feliz. A prova disso é que engordei 30 kg. Quando eu estou bem, sem preocupações, automaticamente consigo tempo para cuidar de mim, da minha alimentação e praticar esportes. Então emagreço me divertindo e não fazendo dietas mirabolantes. Eu estava ganhando dinheiro, mas não tinha tempo para gastar. Eu queria tempo para viajar, ir à academia, pedalar, mas às 7h da manhã o telefone já tocava, ou algum cliente ligava na hora do almoço, ou à noite, ou no final de semana. É uma falta de respeito, não quero nunca mais”, finaliza.