Línguas das quais nunca ouviu falar, sabores e costumes que não chegam facilmente a outras partes do país, frutas desconhecidas, plantas medicinais multiuso e uma relação com a mata e o rio com um quê de magia. E que, mais do que nunca, clamam por preservação.
Nesta segunda-feira (5), quando celebramos o Dia da Amazônia - instituído através da Lei nº 11.621/207 - a jornalista recifense Luísa Ferreira, autora do livro “Guia de viagens pra dentro e pra fora: como viajar de forma transformadora e responsável” conta uma experiência vivida, em 2019, no mundo pré-pandemia, numa comunidade indígena através de uma viagem de três dias no que é conhecido como turismo de base comunitária.
“Tão parecido e tão diferente. Não sei bem o que esperava encontrar na minha viagem para a Amazônia e não sei se já terminei de processar o que vivi por lá, mas sei que todo mundo deveria ir conhecer esse Brasil”, relatou no blog Janelas Abertas, que mantém sobre as viagens que faz.
Sobre a data, Luísa fala sobre o quanto é urgente protegermos a Amazônia e os povos originários. "Precisamos proteger a Amazônia, e para isso devemos proteger também os povos indígenas, que desempenham um papel essencial na preservação da terra e da cultura. Vivenciar o dia a dia de uma comunidade indígena através de um projeto de turismo de base comunitária me fez perceber mais que nunca como nosso modo de vida extrativista e produtivista é prejudicial".
Baixo custo
Diferente do que imaginou, Luísa conseguiu fazer uma viagem a um custo bastante acessível. “Fazia muito tempo que eu sonhava em conhecer a Amazônia brasileira, mas pensava que uma viagem até o coração do Brasil seria caríssima. Achava que as passagens aéreas custariam um rim e que os roteiros seriam todos pensados pra gringos. Felizmente, descobri que não é bem assim”.
Uma passagem, sem promoção, de ida e volta entre Recife e Manaus saiu por R$ 600. Lá, Luísa se hospedou com uma família local, diferente do que vendem algumas agências, com passeios de alguns dias na floresta, além do esquema “hotel de selva luxuoso”.
Segundo ela, existem opções interessantes com saída tanto de Manaus quanto de outras cidades do Amazonas, como Tefé, e também de outros estados, como o Pará. “Alguns desses pacotes são surpreendentemente baratos, inclusive. Mas isso porque promovem um turismo de massa, de larga escala, que não era bem o que eu procurava para essa experiência”.
Turismo de base comunitária x turismo de massa
Luísa reflete, tanto no seu livro, como no blog, o turismo consciente. “Quando você planeja uma viagem, pensa no impacto que vai ter no destino? Durante e depois das suas férias, costuma refletir sobre suas responsabilidades como viajante? O turismo responsável é um conceito que deveria ser redundante, mas infelizmente ainda não é. Afinal, muitas viagens trazem mais impactos negativos que positivos para os lugares que visitamos”, destaca.
Por isso, na Amazônia, Luísa preferiu o de base comunitária através da Braziliando, uma pequena empresa que oferece pacotes diferentes, com roteiros desenvolvidos em conjunto com os moradores dessas comunidades ribeirinhas, de acordo com suas necessidades e levando a sério a preservação ambiental.
Diferente do que é oferecido pelas agências envolve, muitas vezes, interação com animais, o que pode ser um problema na região, como aponta a ONG Proteção Animal Mundial, em que 94% das excursões para Manaus permitem e incentivam fotos com os animais, prejudicando-os.
“Assim, além de contribuir com um projeto com impacto social positivo, o viajante tem a chance de vivenciar a Amazônia de uma forma mais conectada com a realidade local. Enquanto outros roteiros incluem uma parada de algumas horas numa comunidade ribeirinha, você vai ter a chance de realmente viver esse dia a dia”, conta.
A Braziliando trabalha com diferentes comunidades ribeirinhas. A escolhida por Luísa para a experiência foi a de Nova Esperança, na região do Baixo Rio Negro. Ela fica localizada na Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) Puranga Conquista, no Rio Cuieiras.
“Nessa minha primeira viagem para a Amazônia (de muitas, espero!) viajei junto com um amigo indiano que estava de passagem pelo Brasil. E, apesar de o pessoal na comunidade não falar inglês, foi uma experiência bem legal pra ele também”, revela.
O percurso de Manaus até a comunidade
Para chegar em Nova Esperança é preciso navegar pelo Rio Negro e, depois, pelo Cuieiras. Saindo de Manaus num barco de recreio, meio de transporte usado normalmente pela população, são cerca de 7 horas de viagem.
É possível fretar uma lancha privada pra fazer o trajeto de Manaus até Nova Esperança em duas ou três horas, mas custa em torno de R$ 600 por trecho para um passageiro e R$ 1 mil para grupo de 2 a 5 pessoas.
O valor estava totalmente fora do orçamento, então ela resolveu fazer o trajeto de barco recreio, que tem saídas regulares do porto em frente à Feira Manaus Moderna, no Centro da cidade. Cada trecho custa hoje R$ 35 por pessoa, pagos na hora de descer da embarcação.
“Confesso que fiquei apreensiva ao pensar nas sete horas de viagem de barco, porque tinha ouvido falar que essas embarcações às vezes vão superlotadas e que já aconteceram acidentes na região. E além de pensar na segurança, imaginei que podia ser desconfortável, cansativo ou tedioso. Mas me preocupei à toa, porque o percurso acabou sendo uma das minhas partes preferidas dessa experiência”.
O trajeto de barco
No barco, Luísa recebeu uma rede no primeiro andar. “Ainda bem, porque não tem ganchos e eu não saberia dar aqueles nós “de marinheiro” que a galera aparentemente nasce sabendo”, brinca.
Sem o barco cheio, como imaginou, ela mandou fotos dos coletes salva-vidas para a mãe e curtiu o trajeto, observando as comunidades ribeirinhas, algumas casas isoladas e a baldeação de alguns passageiros entre barcos.
“O dia tava friozinho e nublado, a brisa uma delícia, e eu não sentia vontade de fazer nada além de preguiçar na rede. Passei um bom tempo só olhando as famílias dormindo abraçadas em redes e as largas margens do rio, que de tão tranquilo nem fazia o barco balançar (felizmente pra mim, que enjoo fácil)”
A maior parte do percurso foi pelo Rio Negro, até que o barco adentrou o Rio Cuieiras. “Passamos por outras comunidades e, enquanto os últimos raios de sol se deitavam sobre as crianças brincando no rio, aportamos no nosso destino. ‘Bem-vindos à nossa com’, dizia uma placa bonita, mas quebrada, na entrada de Nova Esperança. Que boas-vindas, viu? Já nos encantamos desde o início”.
A comunidade indígena de Nova Esperança
Nova Esperança foi fundada por indígenas da etnia Baré. Hoje, vivem lá cerca de 40 famílias, sendo que grande parte tem alguma relação de parentesco entre si. A maioria vive do roçado ou da venda de artesanato.
A tradição do artesanato é passada de pais pra filhos. Juliana, anfitriã de Luísa, aprendeu com a mãe a fazer pulseiras, colares, brincos e outros objetos a partir de sementes, palha e penas. Walmir, seu marido, ensinou o filho a trabalhar com madeira.
Os produtos são vendidos pra turistas que param lá em barcos pra conhecer o lugar rapidamente, ou pra revendedores em Manaus e outras partes do Brasil.
Não tem sinal de celular na comunidade, nem fornecimento de energia elétrica. As casas têm geradores, mas eles só são ligados algumas horas por dia, já que custa caro abastecê-los com combustível. Muitos moradores têm wi-fi, mas só podem usar nesses intervalos em que conectam a energia.
Apesar de falarem português, eles tentam manter vivo o Nheengatu, idioma dos Baré. Essa língua é como uma versão moderna do Tupi, que foi espalhada pelos jesuítas e se tornou o idioma mais falado na Amazônia durante uns 200 anos.
Os anfitriões e a hospedagem
A hospedagem de Luísa foi em uma comunidade indígena, que, conforme ela relata, não tem o “exotismo” que preveem os estereótipos e está próxima de um estilo de vida que é muito parecido com outras regiões rurais.
Ao lado do amigo indiano, Luísa passou três dias inteiros na comunidade (mais um dia para ida e uma noite inteira pra volta), na casa dos anfitriões Juliana e Walmir. O casal, com quatro filhos, têm um quarto de hóspedes e usam o dinheiro do turismo como complemento de renda. Eles já hospedaram dezenas de pessoas de várias partes do Brasil e do mundo e foram atenciosos.
“Sempre perguntavam se precisávamos de alguma coisa e se queríamos comer mais. A resposta, confesso, muitas vezes era ‘sim’. Nos deixaram bem à vontade e foram bem pontuais com a programação de ‘atividades de descoberta’ previstas no roteiro. A casa é simples, como tudo por lá, mas bem ajeitadinha. O quarto de hóspedes tem uma cama de casal, rede, mesa e banheiro com chuveiro (frio), privada e pia. Tem uma tomada no quarto, onde pudemos recarregar nossos celulares e câmeras – mas a energia elétrica é limitada”.
As refeições estavam todas incluídas no pacote da Braziliando e era servida comida caseira e típica, como bolo de macaxeira, bolinhos de tapioca, flocos de tapioca misturados no café com leite, tucumã, peixes pescados ali mesmo e sucos de frutas do quintal.
O dia a dia em Nova Esperança
- Dia 1: trilha pela floresta e caminhada pela comunidade
A Braziliando oferece um roteiro com a programação do dia a dia. As atividades podem mudar se as condições climáticas não ajudarem. Os passeios incluem barco, trilhas, desvios de mosquitos e muito repelente, além do encontro com plantas com propriedades medicinais.
O trecho inclui passar pela biblioteca, a escola e outros espaços coletivos de Nova Esperança, como os campinhos de futebol de homens e de mulheres, um espaço para eventos e reuniões, duas igrejas (católica e presbiteriana) e um postinho de saúde.
- Dia 2: farinhada, banho de rio e canoagem pela floresta alagada
O segundo dia começou com farinhada!
Por mais que as comunidades ribeirinhas da Amazônia tenham suas particularidades, a maioria delas tem algo em comum: a mandioca.
Em seguida, almoçaram peixes, tomaram banho de rio, e percorreram a floresta inundada de igarapés e igapós de canoa.
“O rio vira um espelho, e ver os troncos imensos das árvores cobertos de água é surreal. Esse passeio foi emocionante! Navegamos pelas “trilhas aquáticas” entre as plantas, devagarinho, admirando os vários tons de verde da mata e o silêncio que só era entrecortado pelo remo entrando na água e os passarinhos cantando. Na volta, fomos ver o pôr de sol deslumbrante à beira do rio. Como sempre, as crianças brincavam por lá, naquela alegria de quem não cresce entre quatro paredes”.
- Dia 3: manhã livre, oficina de artesanato e retorno a Manaus
O terceiro dia viagem para a Amazônia foi meio preguiçoso, como define Luísa, o que incluiu o balanço da rede, as cigarras e sabiás, banho de rio e oficina de artesanato em Nova Esperança.
A volta de barco pra Manaus
O retorno de barco para Manaus foi, segundo a Luísa, foi ainda amis especial e bonita, especialmente pelos raios que cortavam as nuvens.
“Cada descarga elétrica era um ‘woooow’ e a gente ali, bestinha, feito criança.Cruzamos a noite por quase 12h admirando as estrelas e a escuridão. A volta foi mais demorada que a ida porque passamos algumas horas atracados em frente a uma comunidade perto de Manaus, mas tava tão gostoso que nem me importei”.
Sobre o livro
O livro de Luísa
destaca-se por ser um manifesto por viagens, com mais profundidade e senso crítico, sem deixar de lado a leveza e a criatividade que o tema evoca. Composta por oito capítulos, divididos em três partes, o livro propõe que os leitores façam viagens transformadoras, não só para eles, mas também para os lugares que visitam e às pessoas que vivem neles - temática mais pertinente que nunca nesta retomada do turismo.
Para isso, a autora percorre temas ligados ao autoconhecimento, turismo responsável e planejamento de viagens, sejam a turismo, intercâmbios, períodos sabáticos ou como estilo de vida, sem data para voltar. E além de teoria, histórias da vida na estrada, poesias e dicas práticas, a autora reservou espaços para cada leitor(a) escrever sua própria história.
Por fim, a obra aborda, também, os clichês, com o destaque para o papel dos viajantes nesse contexto, perpassando por diversos temas relativos ao universo das viagens turísticas.