Por toda a Europa , uma nova série de medidas de confinamento esvaziou as ruas de cidades como Roma, Paris e Londres, que normalmente recebem hordas de turistas. Mas também temos Istambul.
Devido à quarentena rígida imposta pelo governo há duas semanas para tentar diminuir a perigosa ressurgência do novo coronavírus, os moradores da cidade mais populosa e agitada da Turquia foram obrigados a ficar em casa no último fim de semana. De acordo com as restrições em âmbito nacional que provavelmente se estenderão às próximas semanas, ninguém foi permitido se aventurar fora de casa entre as 21h da sexta até as 5h da segunda, com multas para quem desrespeitasse a lei.
Só que os turistas estrangeiros estão isentos, o que significa que estão livres para ver os monumentos, passear pelas ruas e atravessar o Bósforo de balsa, mesmo que os habitantes permaneçam "de castigo".
A maioria dos museus, incluindo os palácios de Topkapi e Dolmabahçe, permaneceu aberta no fim de semana, e alguns restaurantes de Sultanahmet, o centro histórico, abriram as portas secretamente para os visitantes dispostos a comer no salão. Muitos hotéis também oferecem refeições internas e externas. Na tarde de sábado, por exemplo, era possível ver os hóspedes do requintado Shangri-La no terraço, saboreando frutos do mar fresquíssimos acompanhados de vinho branco gelado sob o sol.
"Atualmente, você quase espera ser punido por viajar, com tanta gente condenando e as restrições que mudam de uma hora para a outra... mas aqui estamos, com acesso exclusivo a uma das cidades mais belas e encantadoras do mundo", diz a instrumentista britânica de 32 anos Erin Lockhart, enquanto toca seu violão como contraponto ao Bósforo, cintilante e imóvel feito um espelho graças à ausência do tráfego normal de barcos.
Ela decidiu viajar para Istambul na semana passada para se encontrar com o namorado americano porque era uma das poucas opções para a qual ambos poderiam pegar voo direto sem ter de cumprir quarentena. Como outros turistas que acabaram conhecendo no fim de semana, eles não sabiam antes da chegada que estariam livres para perambular pela cidade.
Desde a reabertura de suas fronteiras para os visitantes internacionais, em junho, o governo turco não exige exame nem confinamento para quem chega. Triagens e verificação de temperatura são realizados nos aeroportos, e quem revelar sintomas da Covid-19 é levado a uma clínica médica para fazer o exame.
O setor do turismo turco deve encolher até 70% este ano, recebendo 15 milhões de viajantes e gerando mais de US$ 11 bilhões em lucro. É uma queda drástica em relação aos 45 milhões de visitantes e US$ 35 bilhões em lucro em 2019, de acordo com as estatísticas do Ministério de Cultura e Turismo. Apesar da tentativa de salvá-lo, com a criação de um programa de certificação de turismo saudável para garantir que a indústria de viagens e a de hospitalidade cumpram os requisitos de higiene e saúde do governo, as chegadas em julho caíram 86% em comparação com o mesmo período em 2019.
A maior parte da Europa atualmente está sob uma forma ou outra de confinamento. A comissão de viagens da UE disse que não estava monitorando para saber se os turistas estavam isentos em outras cidades, mas bastou uma olhada nas regras do bloco para ver que nenhum outro país dá passe livre aos visitantes enquanto força a população a manter a quarentena.
Grande parte dos turistas internacionais em Istambul no fim de semana passado eram russos e/ou do Oriente Médio, mas havia muitos europeus e norte-americanos na multidão. Para muitos, a decisão de ir à Turquia foi motivada pelo "desgaste com o confinamento".
"A vida é curta demais para ficar em casa mais um ano inteiro. Fazia tempos que estávamos nos sentindo feito animais enjaulados; queríamos fugir, conhecer um lugar com uma energia e uma cultura diferentes", diz Ana Nicolas, de 53 anos, que saiu de Madri, na Espanha, país que está sob um toque de recolher nacional e um estado de emergência que deve durar pelo menos até maio de 2021.
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Entretanto, o clima e a energia de Istanbul também foram seriamente atingidos pelo toque de recolher de fim de semana, com muitos restaurantes e lojas fechados e os moradores em casa. A agitação da vida local — o trânsito, as buzinas, os pescadores, a circulação das balsas, o barulho dos canteiros de obras e os aromas irresistíveis das barracas de comida — deu lugar a uma tranquilidade surreal e a um silêncio tão grande que era possível ouvir o som das gaivotas e dos galos ao longe.
"Sem dúvida, é uma experiência única ter a cidade só para si. Incrível poder usufruir de todas as exposições sem uma multidão à sua volta. Eu me senti meio VIP, e muito seguro", vibra Marc Heroux, analista financeiro francês de 48 anos que passou o dia percorrendo museus com uma amiga que saíra da Alemanha.
No sábado e no domingo, oficiais à paisana patrulhavam as ruas e a polícia organizou postos de verificação em diversos bairros para checagem individual do documento de identidade e do passaporte das pessoas em circulação. Os trabalhadores essenciais e os turistas podiam prosseguir sem problemas; já os outros recebiam uma multa de 3.150 liras turcas (cerca de R$ 2.100).
A decisão do governo turco de instaurar o confinamento em nível nacional no fim de semana foi para conter o aumento rápido das infecções e o número recorde de mortes, que mais que dobraram em três semanas. Para a maioria dos visitantes, a chamada para a reza, que ecoa pela cidade cinco vezes por dia, não se distingue das orações fúnebres, sombrias, transmitidas com frequência nas últimas semanas, quando a pandemia ganhou força renovada.
Porém poucos se mostram preocupados com o risco que a pandemia representa. "Eu me sinto segura porque tenho anticorpos", explica Bagrta Kalachinov, moscovita de 36 anos.
Admirando a silhueta dos antigos minaretes do topo da Torre Gálata, Denis, seu marido, confessa-se mais seguro na Turquia do que na Rússia, a terra natal, onde pouca gente usa máscara e o comércio está aberto como se nada estivesse acontecendo.
"A princípio estava meio chato porque os bares e restaurantes estavam fechados, mas agora achamos uns lugares que deixam a gente entrar, mesmo que do lado de fora pareçam estar vazios", conta ele. Os trabalhadores do setor tentaram aproveitar as oportunidades que a liberdade dos turistas representava.
À porta de um café, um homem fantasiado de sultão tentava atrair a clientela com a promessa de guloseimas fresquinhas e distanciamento social no salão. Um vendedor de sorvetes turco tradicional, famoso pelos malabarismos na hora de servir, deu um verdadeiro show, e uma loja de lembrancinhas abriu para um grupo de mulheres da África Ocidental que queria comprar café turco e bolsas de couro.
"Este ano está sendo uma exceção em todos os aspectos, principalmente para Istambul. Vamos ver se a decisão de se manter aberta para o turismo vai trazer mais visitantes. Acho que depende de quanto vão se sentir satisfeitos ao voltar para casa", diz o guia de turismo Cuneyt Uygur. A maioria dos turistas atualmente na cidade é de jovens aventureiros. Pode ser que acabem entediados ao ver tantas atrações fechadas.
Na manhã da última segunda (21), o comércio teve permissão para funcionar, com os cafés e restaurantes oferecendo serviço de delivery. "Não são férias comuns, mas é muito bom poder zanzar pela cidade com tão pouca gente por aí, sentar ao sol e beliscar alguma coisa, tomar uma cerveja", diz Mandy Miller, estudante londrina de 26 anos que passaria uma semana na Turquia com o namorado sem ter dito nada à família e aos amigos.
"Está todo mundo histérico com esse vírus, mas a maioria das pessoas que pega fica bem. O negócio é ter coragem e procurar viver na maior normalidade possível. Todo lugar deveria ser assim, liberdade e tranquilidade. Londres está tão deprimente", comenta enquanto dá o restinho de seu kebab de frango para um cachorro de rua e um grupo de turistas se amontoa atrás dela para fazer selfies na frente da mesquita Ortakoy.
Embora alguns turcos tenham aprovado o sistema de confinamento diferenciado, alegando que era bom para a economia, outros acharam impróprio ter turistas zanzando pela cidade enquanto os moradores sofriam as consequências da segunda onda da Covid-19.
"Fico feliz porque os estrangeiros gostam de visitar meu país, mas com os hospitais lotados e tanta gente morrendo talvez não seja hora para ser aventureiro", comenta Tulin Polat, de 26 anos, que perdeu o emprego de garçonete por causa do novo confinamento. "Aceitar turistas sem exigir a realização de exames só piora a situação. Mandam a gente ficar em casa, mas eles podem sair por aí, ou seja, basicamente estamos lhes dando permissão de espalhar o vírus".