Expedição que custa R$ 500 mil por dia ajuda a entender o planeta

Cientistas brasileiros ficaram 70 dias em uma jornada à Antártica, para estudos sobre o solo e as transformacões da Terra

A circum-navegação foi a segunda feita na história
Foto: José João Lelis Leo de Sousa
A circum-navegação foi a segunda feita na história

Brasileiros que fazem parte de um grupo seleto de cientistas do mundo todo estão de volta ao país depois de 70 e quase 30 mil quilômetros percorridos em uma expedição de circum-navegação (viagem ao redor da Terra, ilha ou continente) na Antártica.

Além deles, estudiosos da Rússia, Índia, China e África do Sul, bem como convidados do Chile e da Argentina, participaram da jornada que tem como objetivo principal investigar os impactos das mudanças climáticas na região.

Foco em estudar o solo do continente gelado

Os estudos realizados nos últimos anos deram origem a um banco de dados de solos para consultas de pesquisadores internacionais. 

Nessa expedição ocorrida entre o final de novembro de 2024 e janeiro de 2025, os cientistas deram a volta em todo o continente, passaram por nove estações de pesquisas de outros países, onde existem informações de estudos sobre biomas e fauna. Mas não há detalhes sobre os solos, tema no qual os brasileiros são especializados, e que foi o foco da expedição dos cientistas daqui.

O professor José João Lelis Leo de Sousa, do Departamento de Solos da Universidade Federal de Viçosa (MG), integrou a equipe e conversou com o Portal iG sobre a relevância do estudo sobre os solos gelados. "O solo sintetiza a história da paisagem, ajudando a entender como um ecossistema se transformou ao longo dos milênios", afirmou.

A pesquisa

A circum-navegação foi a segunda feita na história
Foto: José João Lelis Leo de Sousa
A circum-navegação foi a segunda feita na história

A expedição reuniu especialistas em glaciologia (estudo de geleiras), ciências marítimas, contaminação atmosférica e precipitação. Técnicas para entender a "idade" do solo foram aplicadas na busca por reconstruir mudanças ambientais ao longo do tempo. 

"A partir das amostras, conseguimos identificar períodos de glaciação e degelo que influenciam diretamente o clima da América do Sul", explicou à reportagem do iG .

Ele continua: “A formação dos solos tem uma relação íntima com as condições climáticas da Antártida, assim como com o recuo ou o avanço das geleiras. Te dou um exemplo: se uma geleira começa a recuar, ela expõe uma área que antes não estava visível, que pode ser apenas rocha. Essa rocha então passa por intemperismo físico, químico e biológico, iniciando o processo de formação do solo.”

Foto: José João Lelis Leo de Sousa
A circum-navegação foi a segunda feita na história

Para entender a evolução dos fatos ocorridos na Antártica ao longo de bilhões de anos, é necessário recorrer muito às condições do solo, por ser uma das poucos recursos possíveis de serem explorados com esse objetivo. "O gelo não consegue armazenar esse tipo de registro, e a vegetação não é suficientemente densa para fornecer essas informações. Já o solo é perfeito para revelar essa história. Assim, conseguimos entender como o clima da Antártica evoluiu no passado até os dias de hoje e, consequentemente, comparar essa evolução com a mudança climática na América do Sul”, resume.

O que esperar a partir de agora?

Os próximos passos da pesquisa envolvem a chegada e análise das amostras coletadas durante a expedição. “As amostras chegarão logo no Brasil e assim que chegarem a gente começará a processar e analisar. Essas análises vão ser feitas com auxílio de alunos de graduação e de pós-graduação aqui da nossa universidade, além também de laboratoristas". 

Foto: José João Lelis Leo de Sousa
A circum-navegação foi a segunda feita na história

A expedição também se dedicou à instalação de sensores para monitoramento ambiental a longo prazo. O pesquisador explica: "Nessa circum-navegação, o nosso grupo não só fez coleta de amostra, mas também instalou sensores em campo. Sensores que monitoram a cada hora a temperatura do solo, a umidade do solo, a temperatura do ar e a emissão de gases de efeito estufa".

Esses dispositivos foram implantados em três regiões distintas da Antártica e serão fundamentais para entender as mudanças ambientais futuras.

"Nós teremos informações de áreas sobre a temperatura, umidade e emissão de gases por esses solos que vão nos ajudar também a compreender agora não só o passado, mas pensar o futuro da Antártica. Na medida que a gente tem um aquecimento, na medida que a gente tem um degelo, na medida que aquela área começa a ser colonizada por indivíduos, por organismos, como que o solo reage?". 

Foto: José João Lelis Leo de Sousa
A circum-navegação foi a segunda feita na história

Os dados coletados são inéditos e representam uma contribuição significativa para a ciência brasileira e mundial. “Todas essas informações são completamente inéditas e nos permitem várias coisas. Primeiro, dar um passo à frente nos estudos da Antártida. Um brasileiro, por incrível que pareça, tem uma história muito grande de estudos na Antártida, isso é muito interessante. A comunidade científica mundial reconhece isso muito bem, e isso é muito bom para nós. Nos coloca numa posição junto ao tratado da Antártida, muito interessante". 

Desafios: custos e frio

Foto: José João Lelis Leo de Sousa
A circum-navegação foi a segunda feita na história

A realização de circunavegações científicas na Antártida é um feito raro, e o principal motivo para isso é o custo elevado.

Segundo o pesquisador, "o custo estimado para uma circum-navegação desse porte gira em torno de 90 mil dólares (mais de R$ 500 mil) por dia". Esse valor se deve à necessidade de transportar equipamentos, garantir a segurança e o conforto mínimo da equipe, além da grande distância percorrida. 

Além dos custos, a logística para esse tipo de missão é extremamente complexa. "Esse tipo de expedição não é comum", afirma José, que ressalta que ela exige um longo período de planejamento e execução.

O Programa Antártico Brasileiro realiza operações regulares na Antártica, mas elas são mais viáveis porque os navios partem do extremo sul da América do Sul e seguem até a Antártica Marítima, onde o mar está menos congelado.

Foto: José João Lelis Leo de Sousa
A circum-navegação foi a segunda feita na história

Outro desafio enfrentado pelos pesquisadores são as condições climáticas adversas. Algumas áreas exploradas nunca haviam sido estudadas antes, e a equipe foi a primeira a coletar amostras de solos em determinadas localidades. 

Em alguns momentos, a equipe pode encontrar temperaturas relativamente suportáveis, mas a situação pode mudar em minutos. "Às vezes a gente consegue fazer um campo que tá com uma temperatura agradável ali perto de -2, -4, às vezes até próximo de 0 e sem muito vento, mas a Antártida é uma caixinha de surpresas".

"Em menos de 10, 15 minutos, você pode ter uma mudança completamente de um clima de praia, de Copacabana, para um clima severo, onde a gente não vai conseguir enxergar nada". Essas condições extremas tornam a pesquisa na região um desafio único e de alto risco. 

Foto: José João Lelis Leo de Sousa
A circum-navegação foi a segunda feita na história

O derretimento acelerado torna a locomoção arriscada. É, portanto, fundamental ter um conhecimento prévio sobre a região e saber identificar as melhores rotas. "Isso pode se tornar arriscado e aí exige um conhecimento prévio sobre como encontrar as melhores rotas", destaca. Por isso, a segurança é priorizada com o uso de cordas para manter todos os pesquisadores conectados. "Todo mundo sempre encordado, então uma corda amarrada em todos os colegas", reforça ele.

Além disso, a regra fundamental é nunca fazer coletas sozinho. "Nunca em hipótese alguma fazer coletas sozinho, isso em qualquer trabalho", enfatiza. Mesmo fora das geleiras, o ambiente antártico é hostil, e qualquer incidente, como torcer o pé, pode significar horas de espera sem auxílio imediato. "É uma condição muito extrema, não dá", conclui.

Foto: José João Lelis Leo de Sousa
A circum-navegação foi a segunda feita na história



"A Antártica, por si só, já é um ambiente hostil. extremamente frio, com ventos fortíssimos e um clima muito seco", aponta o pesquisador. Para garantir a segurança, a equipe utiliza roupas especiais, botas adequadas e luvas térmicas, além de proteção para os olhos, evitando problemas como queimaduras pelo frio e cegueira temporária causada pela reflexão da luz solar no gelo.

Troca com outros países

Foto: José João Lelis Leo de Sousa
A circum-navegação foi a segunda feita na história

Para José, um dos principais ganhos da expedição foi a possibilidade de colaboração entre pesquisadores de diferentes países. Ele afirma que "foi talvez uma das melhores coisas que essa expedição nos pode proporcionar", já que a troca de experiências com colegas que estudam temas semelhantes, mas com métodos distintos, contribui para um conhecimento mais amplo e complementar.

"Existem, logicamente, diferenças culturais, mas todos lá com uma vontade muito grande de respeitar o outro, de aprender e de ensinar", explica o pesquisador. "Essas colaborações com os russos, com os indianos e com os chineses foram perfeitas", 

Foto: José João Lelis Leo de Sousa
A circum-navegação foi a segunda feita na história

A comunicação não foi um obstáculo significativo para a equipe, já que o inglês serviu como língua comum entre os pesquisadores de diferentes países. "Eu não acho que a gente teve nenhuma barreira linguística", comenta o participante, explicando que a interação com os latinos foi ainda mais natural, ocorrendo em um "portunhol" que permitia a todos se entenderem perfeitamente.